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Cantado por Dorival Caymmi e Vinícius de Moraes, Itapuã é um daqueles lugares que uma tarde já é o suficiente para se apaixonar. O nome de origem tupi, que significa “pedra de ponta” ou “ponta de pedra” e não “pedra que ronca”, como se costuma dizer, é um indício dos seus primeiros moradores. Bairro de mistérios e tradições, Itapuã impressiona pela intensa diversidade cultural e exuberante beleza.
Da praia de Itapuã à de São Tomé, hoje chamada de Piatã, ou às margens da Lagoa do Abaeté, grupos religiosos e culturais se encontram para as mais diversas atividades. As Ganhadeiras de Itapuã é um deles. Criado há dez anos, o grupo de resgate e valorização de antigas tradições funciona como uma espécie de cooperativa formada por 21 mulheres, em sua maioria ex-lavadeiras do Abaeté, amigas de infância e nativas do bairro.
“Nós criamos a Ganhadeiras, por causa do ganha pão aqui de Itapuã. Os maridos pescavam, as mulheres assavam os peixes e saiam para vender. Mas ganhadeira é quem faz qualquer coisa para sobreviver. Quem lava, quem passa, quem costura, quem cozinha”, explica Dona Maria de Xindó, ganhadeira de Itapuã desde que o grupo dava os primeiros passos.
“Queríamos resgatar coisas antigas de Itapuã que estavam morrendo, se dispensando. De repente, começamos a cantar, fazer samba, nos apresentar, até que conseguimos gravar o CD, que vamos lançar dia 25”, completa Dona Maria Ermelina, carinhosamente conhecida por Mariinha. Aos 80 anos, a ganhadeira também está no grupo desde o início do projeto, quando ainda não se sabia ao certo os desdobramentos que a iniciativa tomaria.
De 2004 para cá, muitas coisas mudaram. Embora, na perspectiva de Dona Mariinha, as mudanças não tenham sido para melhor, ela tem fé que dias melhores estão a caminho. “Como em todo lugar, a gente não tem mais aquela privacidade que tinha. Podíamos sair a qualquer hora, voltar a qualquer hora. Nós lavávamos aqui no Abaeté, podíamos deixar a roupa na margem e subir o morro para pegar frutas no mato, flores, lenha. Agora, a gente não pode nem subir a ladeira mais”, pontua.
“Mas vamos agradecer a Deus que nós estamos vivas. Esperar para ver se melhora pelo menos um pouquinho. Tem que acreditar. Não se pode perder a fé. Piora uma coisa, melhora outra, e a gente vai levando devagar, com fé em Deus e muito samba”, diz Dona Mariinha aos risos. Como grande parte das ganhadeiras, Maria Ermelina desempenhou não uma, mas diversas funções sociais. Foi lavadeira, costurou e bordou para fora. “Meu marido tinha o emprego dele, mas não dava”, relembra.
Assim como Mariinha, Dona Maria Lúcia também trabalhou de ganho em Itapuã e relembra como era viver no bairro naquela época. “Existiram, aqui no Brasil, vários tipos de ganhadeiras, cada uma com sua especialidade. Meus avós, maternos e paternos, foram ganhadores e ganhadeiras. Vendi pamonha, mingau, cocada e já lavei de ganho”.
“As casas eram cobertas de palha, não tinham piso, não tinham água e nós vivíamos felizes. Era só alegria. Fomos felizes e não sabíamos. Tive o prazer de conhecer o Abaeté, aquela lagoa linda, e fico triste de vê-lo nesta condição”, lamenta ao olhar para a lagoa. Lucinha, que nas Ganhadeiras atende pelo pseudônimo de Preta Maria, é cantora aposentada do coral da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e irmã de Ana Maria Conceição das Virgens, fundadora do grupo junto com Amadeu Alves, gestor do espaço cultural Casa da Música.
Maria Lúcia conta que Amadeu esteve em sua casa procurando Ana Maria para desenvolver um trabalho em Itapuã com o intuito de promover o resgate da memória afetiva do bairro e impedir que as tradições culturais de Itapuã caíssem no esquecimento. “Estamos tentando resgatar essa cultura para mostrar aos que estão chegando que existiu em Itapuã tudo o que estamos apresentando hoje”, observa.
Dona Eunice Jorge, de 77 anos, é conhecida pela alcunha de Nicinha. Ganhadeira desde os 14 anos, vendia de pamonha a moqueca de folhas, todos quitutes que a mãe preparava. “Subia as dunas do Abaeté e saía na Praia do Flamengo. Não tinha medo de nada. Catava as frutas do caminho e coco ‘peco’ para fazer carvão e assar os peixes. Depois aprendi a costurar e foi minha salvação. Tinha 16 anos”. Aos 27, Nicinha se separou do marido e não quis casar-se novamente. Sozinha, cuidou das duas filhas, na época com dois e três anos.
Nicinha também integra As Ganhadeiras de Itapuã desde a formação do grupo. “Sempre tive vontade de ser cantora, mas nunca pensei ser compositora. Agora estou vendo os dois sonhos se realizando. É maravilhoso!”, diz empolgada. “Nunca sonhei coisas grandes, mas o que eu tinha vontade de conseguir, eu consegui. Queria ser costureira, fui costureira. Fui cabeleireira, confeiteira, tudo isso para criar filho. Mas hoje eu estou feliz, sambando nas Ganhadeiras”, celebra orgulhosa Dona Eunice, estampando no rosto um sorriso tão exuberante quanto o da ganhadeira Tereza Cristina, apelidada de Lica.
Com 53 anos, Lica é dona de casa, mas já foi professora e lavadeira. Criança, acompanhava a mãe e a irmã até o Abaeté para ajudá-la a lavar 12 trouxas de roupa por dia. “Às 4 horas da manhã, vínhamos para o Abaeté. Quando chovia, nossa mãe enrolava a gente em um plástico e quando o sol saía estávamos todos que nem cuscuz, molhados de suor”, relembra às gargalhadas. Assim como as companheiras, Tereza espera com alegria o lançamento do primeiro CD do grupo.
Gravado em 2013, no estúdio Coaxo do Sapo, o álbum reúne canções resgatadas pelas ganhadeiras, que recontam histórias do passado e do presente da antiga aldeia de pescadores de Itapuã. Com 13 faixas, o disco traz cantigas e sambas-de-roda inéditos, releituras do mestre Caymmi e a participação das cantoras Margareth Menezes e Mariene de Castro, com quem as Ganhadeiras já se apresentaram diversas vezes.
“Esperamos que o grupo vá à frente e bem longe. Quando eu for embora que elas não deixem morrer”, diz Dona Mariinha. Atualmente sem sede, a ganhadeira chama a atenção para a necessidade de ter um espaço para ensaiar e desenvolver outras atividades, como oficinas. “Nós precisamos de uma sede, para ensinar às crianças ou alguém que queira aprender alguma coisa. Temos quem ensine, mas não temos o local”, lamenta.
Manifestações Culturais
Além das Ganhadeiras, Itapuã também é berço doMalê Debalê, um dos mais tradicionais blocos carnavalescos da Bahia. Criado por moradores do bairro, no final dos anos 1970, em homenagem aos Malês, negros muçulmanos que lutaram contra o processo de escravização, o bloco conduz anualmente o cortejo da Festa da Baleia, idealizada pelo poeta e compositor Waly Salomão, com o intuito de resgatar a história de Itapuã através da alegoria visual. O festejo começa no sábado de Carnaval, quando uma réplica de Jubarte feita de papel, madeira e tecido chega à praia trazida pelos pescadores, e se encerra na quarta-feira de cinzas, quando o baleia retorna ao mar.
Outra importante manifestação cultural do bairro é a Lavagem de Itapuã. Realizada há cerca de 100 anos, sempre antes do Carnaval, a festividade surgiu de uma homenagem anual dos pescadores à Iemanjá, ou Nossa Senhora da Conceição no sincretismo. Nas primeiras semanas do ano (a festa não tem data certa para acontecer, pois varia de acordo com o calendário religioso), as baianas lavam as escadarias e o batente da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, enquanto os trios elétricos passam o som e se preparam para a folia. Sagrado e profano, o festejo é uma celebração à vida e costuma reunir centenas de pessoas.
Espaços Culturais e Culinários
Criada para ser o Museu da Imagem e do Som do Abaeté, a Casa da Música é um espaço em permanente efervescência cultural. Localizada no Parque Metropolitano Lagoas e Dunas do Abaeté, o reduto abriga vasto acervo relacionado à história da música baiana, que inclui instrumentos musicais, livros e objetos diversos. Neste mês, o espaço cultural celebra seu aniversário de 21 anos com uma programação especial, que inclui exibição de filmes, rodas de conversa, caminhada nas dunas, piquenique, teatro e música.
Com o objetivo fomentar a produção cultural da comunidade e contribuir para a democratização do acesso a cultura, a Casa promove quinzenalmente e sempre às segundas-feiras, seu projeto mais popular: o Sarau de Itapuã. Com acesso livre, o evento começa a partir das 18h e sua programação integra apresentações musicais, manifestações culturais, bate-papos e oficinas. A próxima edição do Sarau acontece dia 22 de setembro e receberá o show do cantor Pedro de Rosa Morais em homenagem ao centenário de Lupicínio Rodrigues.
Dos acarajés “mais mais” de Salvador, o Acarajé da Cira é referência e disputa o posto de melhor da cidade. O quitute de Dona Jaciara de Jesus Santos é vendido a R$7 (sem camarão) e R$8 (com camarão seco), e agrada paladares de norte a sul do país. Só na tenda de Itapuã, são comercializados uma média de 500 por dia.
No tabuleiro, inaugurado por sua mãe em 1956, além do tradicional bolinho de feijão-fradinho frito no dendê, recheado com vatapá e salada de tomate e cebola, também tem espaço para abará, bolinho de estudante e cocadas de diversos sabores. Além da Rua Aristides Milton ou Largo da Cira, como o lugar foi batizado, a tenda da baiana ocupa outros dois espaços, um no Rio Vermelho e outro próximo à região metropolitana.
O barraqueiro Juvená e a Rainha Moma Dôia, são os anfitriões do tradicional Espaço Eco-etílico Cultural Juvená, um lugar fora dos padrões convencionais, aberto a todo tipo de atividade e público. Exposições, shows, saraus e exibições de jogos importantes movimentam a programação do bar, localizado na Rua Pasárgada, próximo ao Farol de Itapuã.
A beleza exuberante e o vasto e variado cardápio são dois dos atrativos do espaço de quase cinco mil metros quadrados, que além de local de trabalho, é também a residência do casal desde 1974. Lá, o “homem-animal” e sua companheira casaram-se e criaram seus dois filhos. O Espaço de Juvená continua vivo e funciona às sextas, das 17h à 0h, sábados e domingos, das 15h à meia-noite.
>> Juvená (à esquerda) é um icônico personagem de Itapuã
Quem conhece Itapuã já deve, pelo menos, ter ouvido falar do Espaço Verde. O local fica na Praça Calazans Neto, à primeira esquerda do Acarajé da Cira. Criado em 2002, costumava movimentar os finais de semana do bairro com uma programação diversa. Shows, oficinas de música e aulas de capoeira são algumas das atividades promovidas pelo espaço, que reunia artistas, amigos e moradores. Atualmente, o ideal de preservação do ambiente deu espaço ao cenário de abandono. A praça está mal cuidada, as esculturas do artista plástico sem manutenção e o odor é bastante desagradável.
Instalado no “burburinho” no Largo da Cira, o Beiju de Itapuã é um dos pontos mais frequentados no bairro. Na edição 2014 do prêmio Veja Salvador Comer & Beber, o espaço conquistou pela segunda vez o título de melhor estabelecimento da sua categoria. Comandada pelo casal Simone Brandão e Carlos Teixeira, a tenda reúne mais de trinta variações de beiju no cardápio e os preços variam de R$6 a R$10, em média. Os sabores mais pedidos são o de carne seca com banana e queijo; frango com catupiry e leite de coco com canela.
Monumentos e Pontos Turísticos
Inaugurado em 1993, o Parque Metropolitano do Abaeté está situado em uma área de proteção ambiental, que abriga as águas escuras da Lagoa do Abaeté, um dos principais ícones de Itapuã. A lagoa, usada para pesca e lavagem de roupas, era uma das principais fontes de renda dos moradores do bairro.
Em virtude do intenso desmatamento, da desenfreada construção de empreendimentos imobiliários e à própria mudança do seu ecossistema, a lagoa está reduzindo em volume e tamanho progressivamente. Atualmente, cumpre apenas a função de cenário para manifestações religiosas e culturais de grupos da região.
Erguido sobre a pedra de Piraboca, em 1873, o Farol de Itapuã é talvez o patrimônio cultural mais representativo do bairro. A torre construída com o propósito de orientar a navegação marítima e sinalizar os navegantes sobre os recifes da praia, tem 21 metros de altura e estrutura exclusivamente de ferro fundido. Se hoje os soteropolitanos já estão acostumados com o “branco e vermelho” do farol, nem sempre foi assim. Antes de assumir as cores atuais, a torre já foi branca e laranja e até “roxo-terra”.
Sereia do Mar ou Iemanjá, a padroeira dos pescadores inspirou o artista plástico Mário Cravo a criar uma escultura com cerca de 1,5m de altura em homenagem aos seus “filhos”. Assentado em uma pedra de granito, o monumento de ferro batido pintado de prata é um dos principais símbolos do bairro e foi instalado no centro de Itapuã em 1958, no cruzamento das principais avenidas que cortam a localidade: Otavio Mangabeira, Dorival Caymmi e Rua Aristides Milton.
É na rua Carlos Drummond de Andrade, que está localizada a Praça Vinícuis de Moraes, uma homenagem do artista plástico baiano Juarez Paraíso ao cantor e compositor carioca. Inaugurada em 1983, no dia em que “o poetinha” completaria 90 anos, o espaço conta com uma estátua em tamanho real de Vinícius, sentado em um banco e apoiado numa mesa, enquanto a mão direita rabisca um caderno.
A praça, que fica em frente à casa em que o carioca morou, onde atualmente funciona um hotel, também conta com 10 totens de granito apicoado, onde estão gravadas poesias e letras de canções do artista. Em 2013, devido ao centenário do poeta, o monumento fundido em bronze foi recuperado pelo restaurador uruguaio Ramón Marcial, que criou uma pátina especial para a peça.
Antiga capela de pescadores, a matriz da paróquia de Nossa Senhora da Conceição é um dos mais importantes patrimônios histórico-culturais de Itapuã. Fundada em 1815 a pedido do latifundiário Francisco Dias d’Ávila, neto de Garcia d’Ávilla e proprietário da Casa da Torre, em Praia do Forte.
Imagens de Nossa Senhora da Conceição da Praia, de Nossa Senhora de Sant’Ana e de Santo Antônio integram o acervo da paróquia, localizada na Praça Dorival Caymmi. Além da igreja matriz, as capelas Sagrado Coração (Rua Juiz Orlando Melo) e Santo Padre Pio (Vila dos Sargentos) completam a paróquia de Nossa Senhora da Conceição.
*Com supervisão e orientação de Márcia Luz
Fonte: Ibahia.com