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A cena se repete há décadas, sempre no mesmo lugar. No pequeno largo que dá acesso à lagoa do Abaeté, ela surge sem avisar. Toda de branco, veste-se majestosamente, com uma longa saia engomada, linda bata feita de rendas e torço delicado sobre os cabelos. Maquiagem, um discreto esmalte cor-de-rosa, colar, brincos, pulseiras e anéis dourados completam a indumentária dessa filha de Oxum e Iansã, que combina fala mansa e temperamento obstinado. Com andar firme, mas sem pressa, mal olha para os lados ao atravessar a rua, enquanto os carros param para vê-la passar. Quem a vê assim, como uma rainha, nem imagina que a vida de Cira é feita de muito esforço. Ela acorda cedo, compra pessoalmente os ingredientes, participa do preparo da massa e acompanhamentos, orienta suas funcionárias sobre cada detalhe. Depois vem a hora da venda na rua, fritando os bolinhos e atendendo os fregueses até altas horas, todos os dias. Quem começou tudo foi a sua mãe, que já ocupava esse lugar antes dela nascer. Naquele tempo, Itapuã era pouco habitada, a clientela era pequena e mesmo no resto da cidade não havia muitas vendedoras da iguaria.
Feito apenas com feijão fradinho, cebola, sal e frito no azeite de dendê fervente, não é à toa que esse misterioso bolinho tem a cor e a temperatura do fogo. O acarajé é um alimento sagrado, oferecido a Oyá, também conhecida como Iansã, a deusa africana que controla os ventos, as tempestades, os relâmpagos e tem poder sobre o fogo. Na religião dos orixás, os homens dialogam com os seus deuses através dos sacrifícios e oferendas de alimentos. O acará é um deles e veio parar no Brasil através dos escravos africanos iorubás. Como eram as mulheres negras que dominavam as cozinhas, não demorou para que essa e outras receitas africanas começassem a ser conhecidas e admiradas nas mesas brasileiras, conta Luis da Câmara Cascudo em seu livro A cozinha africana no Brasil. No Brasil colonial, acarajés, abarás e carurus, entre outros pratos, eram vendidos nas ruas em tabuleiros que as escravas de ganho equilibravam sobre suas cabeças, enquanto iam cantando pregões para atrair a freguesia. Com o que conseguiam juntar, muitas até conseguiram comprar a própria liberdade.
Por Agnes Mariano