No ano em que completaria 100 anos, Dorival Caymmi ainda é um dos grandes responsáveis pela imagem que o mundo tem da Bahia. Só para termos uma ideia, na década de 60 a Empresa de Turismo da Bahia (BAHIATURSA) divulgou que Caymmi e o escritor Jorge Amado eram os grandes responsáveis pela vinda da maioria de turistas a Salvador. Por falar em Caymmi, uma das imagens que muitos tem dele ainda hoje, é a de preguiçoso. E mais: que ele é o responsável pela imagem de preguiçoso que muitos tem do povo baiano.
Não é bem assim!
Devemos lembrar que, historicamente,não foi Caymmi o criador do termo discriminatório da preguiça do povo baiano. Ele apenas o reforçou e,em alguns momentos, fezuso do elemento para marcar seu diferencial no meio artístico. Essa fama de preguiçoso do povo baiano exerce conotação racista e teve origem na nossa colonização. Os índios aqui encontrados já eram taxados de indolentes por não concordarem com o trabalho forçado.
Posteriormente essa imagem se enraizou no próprio estado da Bahia por meio da elite portuguesa, que considerava os escravos indolentes e preguiçosos devido às suas expressões faciais de desgosto e a lentidão na execução do serviço a que eram forçados. Isso ia de encontro ao desejo dos colonizadores que queriam os escravos trabalhando mais e mais e com satisfação.
Caymmi já chegou ao Rio de Janeiro em 1928 se deparando com esse preconceito. Era uma espécie de mecanismo de defesa de grande parte dos moradores do Sudeste taxar os nordestinos, mais especificamente os baianos, de preguiçosos. Inteligente, Caymmi fez uso do elemento preguiça para destacar seu trabalho.
A preguiça foi então passada por Caymmi de forma poética, assumindo assim uma posição de superioridade, não era o “baiano indolente”, mas “o homem que vinha de uma terra onde tudo era maravilhoso”. Mesmo hoje, a Bahia ainda é considerada olugar ideal para a prática do ócio. Todos querem conhecer a “terra da felicidade”, mas ao mesmo tempo, muitos ainda não aceitam a idéia de seu povo saber dosar trabalho e ócio de forma tão equilibrada.
Inserida em um contexto histórico-cultural que envolve não somente o índio, mas também os negros trazidos para a Bahia com a finalidade de realizar trabalho escravo, a fama de preguiçoso do baiano se espalhou de forma acentuada no Sul e Sudeste do país a partir das migrações, principalmente para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, na década de 40.
Ainda hoje, uma piada atribuída a Ruben Braga e muito difundida em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, diz que o baiano funciona em três tempos: devagar, muito devagar e Dorival Caymmi, quase meditativo, sem ansiedade. Isso reforça a tese de que Caymmi, mesmo não sendo o autor, é um dos grandes responsáveis pela fama de preguiçoso do povo baiano. João Valentão, um dos maiores sucessos do artista, levou nove anos para ficar pronta e Saudade da Bahia, demorou doze anos.
O próprio artista reforçou seu direito ao ócio, em algumas de suas composições e fotografias. Como exemplo, podemos citar a letra da música Maricotinha: “[…] se fizer bom tempo amanhã, eu vou. Mas se por acaso chover, não vou. Uma chuvinha, redinha, aí, piorou: não vou, nem tô”. Mas também não podemos esquecer que, por vezes, o baiano ressaltou o trabalhocomo, por exemplo, em Canção da Partida: “Minha jangada vai sair pro mar / Vou trabalhar…”. Em Sábado em Copacabana, outro grande sucesso de Caymmi, ele diz que o sábado será dedicado ao lazer após uma semana de trabalho quando ele terá direito a alguma horas de diversão.
Ao participar da solidificação e propagação do mito da preguiça, Caymmi também ajudava a firmar de uma forma poética o imaginário da Bahia para o mundo, mesmo depois que deixou Salvador para morar no Rio de Janeiro. Dorival Caymmi foi um trabalhador em defesa do ócio criativo, contribuindo, em muito, para o enriquecimento da cultura nacional e mundial. A preguiça baiana é fruto de preconceito, pois o baiano sabe como ninguém dosar trabalho e ócio sem, com isso, deixar de ser criativo ou produtivo.
Fonte: Carlos Leal – Jornalista e morador do bairro de Itapuã (carlosleal@oi.com.br)