Nada é impossível. Esse é o slogan do IronMan, o maior circuito de triatlo do mundo, mas pode definir bem a trajetória de Fabio Rigueira. Afinal, o assistente administrativo, de 46 anos, já completou duas vezes a prova do “homem de aço”, que reúne 3,8 km de natação, 180,2 km de ciclismo e 42,195 km de corrida – e que pode durar até 17h. Com um detalhe: sem uma perna e grande parte de um pulmão.
Aos 9 anos, Fabio estava brincando quando tomou uma queda. Como a dor estava muito forte, foi levado ao hospital. Os médicos examinaram as pernas, mas não descobriram nada quebrado. Foi quando recebeu outro diagnóstico: tinha osteossarcoma, um tipo raro de câncer que atinge o osso.
“Uma forma da doença de se apresentar é através da dor. Quando ela está em um estado mais avançado, enfraquece o osso ao ponto de quebrar. Pode ser até andando, sem nem precisar cair. A gente descobriu antes de estar neste nível de evolução. Costumo dizer que foi uma queda para me levantar”, relata.
Ali, começaram os tratamentos e sessões de quimioterapia. “Mas não foi possível recuperar o membro e veio a decisão de amputar a perna esquerda”.
Um ano e meio depois, outra notícia triste: um dos pulmões estava em fase de metástase. Foi necessário tirar 2/3 do órgão direito. “E, aí, mais um período de um processo de recuperação. Só que a gente vivia em um dilema, porque precisava passar dez anos sem ter nenhuma reincidência. Foi uma década vivendo com muita tensão, fazia exames de seis em seis meses, anuais… E pedindo para que nada mais acontecesse”.
Em meio às complicações e à quimioterapia, Fabio, então uma criança, conta que teve muita ajuda da família e amigos.
“No âmbito social, não tive nenhum tipo de exclusão. Era um conforto muito legal, eu participava de tudo, inclusive, das coisas mais absurdas da fase de criança, como pular muro, roubar fruta do quintal dos outros (risos). Eu achava aquilo um máximo, porque me sentia uma pessoa comum, como as outras que tinham as duas pernas. Isso me deixou muito forte para o que eu sou hoje. É um reflexo”.
A companheira da vida
Uma atividade comum na infância é andar de bicicleta. E Fabio não ficou de fora. Uma bike foi o presente que ganhou do pai assim que amputou a perna.
“Olha que desafio, né? Eu estava com algo que, logicamente, se precisava das duas pernas. Mas fui aprendendo a pedalar. Na lateral da casa de uma tia minha, havia uma rampinha que ia para o quintal. E um muro, que eu usava para me dar segurança – era o lado que eu não tinha a perna. Então eu descia a ladeira com a bicicleta e, qualquer coisa, eu me jogava no muro, para encostar. Dessa forma, eu fui aprendendo e desenvolvendo cada vez mais”, lembra.
Não demorou muito e ele começou a subir a ladeira, ir para a rua… Quando estava com 17 anos, já tinha um domínio da bicicleta e resolveu fazer um passeio maior, de 15km. Sentiu tanta dor que decidiu dar um tempo das pedaladas. Mas não muito. Resolveu dar uma segunda chance e programou um longo passeio. Treinou, treinou e… foi até Praia do Forte e voltou.
O desafio da adolescência se transformou na mensagem de superação que carrega como estilo de vida. ”Aprendi que tudo é possível desde quando a gente se prepara para aquele obstáculo. Hoje, já faço viagens de 500, 600, 1.000 km”, diz.
Como morava bem perto da praia, em Itapuã, sempre estava pelo mar, seja nadando ou surfando. Incentivado por tios, passou a competir na natação. Venceu torneios em piscina e chegou a fazer a travessia Mar Grande-Salvador.
A terceira etapa
Com a natação e o ciclismo presentes em sua vida, o triatlo chegava cada vez mais perto. E era, inclusive, um desejo de Fabio. No entanto, ainda havia uma modalidade a ser desbravada: a corrida. O baiano até tentou usar próteses. “Mas o meu coto é muito curto, minha perna foi amputada muito alta para evitar uma reincidência do câncer. Então eu não tenho um bom encaixe para perna mecânica”, explica.
Portanto, teria que encarar a prova com muletas. “Pensava: caramba, como é que eu faço isso, eu não sei correr, como é que corre de muletas? E eu ficava sempre protelando essa realização”.
Foi quando, vendo televisão, descobriu o quadro Rumo ao Ápice, do Esporte Espetacular, em que a triatleta Fernanda Keller preparava pessoas para competirem o IronMan. Uma delas era Adriele da Silva, biamputada. Ela não conseguiu finalizar a prova, já que estourou o tempo em uma das modalidades, mas foi o incentivo que Fabio precisava, finalmente.
“Me veio na cabeça a ideia de que eu tinha que fazer [o IronMan] para representar”. O ano era 2017.
Um dia, um amigo o convidou para montar um time de futebol de amputados. Não era um esporte pelo qual ele se interessava tanto, mas topou. E, por incrível que pareça, o futebol foi fundamental para o agora triatleta: “Comecei a perceber que eu conseguia correr”, conta. Dali em diante, buscou um apoio profissional em corridas e achou a assessoria esportiva de Eduardo Filho, seu atual treinador.
Em 2018, a realização: Fabio conseguiu completar a competição em Florianópolis em 14h46min. “Me tornei o primeiro brasileiro a fazer a maior prova de um dia inteiro usando muletas”, orgulha-se. Nos dias seguintes, descobriu que virou inspiração para outras pessoas, que mandavam mensagens positivas. “Cheguei à conclusão que precisava dar continuidade, deixar esse legado”.
Em maio deste ano, fez mais uma vez o IronMan – e melhorou o tempo: 13h56min, terceiro lugar na categoria dele e 1.127º no geral. “Sub 14 [horas] é tempo de pessoas com duas pernas. Não posso mais parar essa história. É muito mais que cruzar uma linha de chegada, virou propósito de vida. Apesar das dificuldades, a gente enfrenta”.
E haja dificuldades. Além do fator físico, há ainda o financeiro, pois o IronMan é uma competição cara. Fora a viagem até Florianópolis e a estadia, a inscrição pode custar mais de R$ 3 mil.
E, no caso de Fabio, ainda há o emprego: ele trabalha em uma empresa, como assistente administrativo, durante 8h por dia.
“Minha rotina é uma loucura maior do que se imagina. Acordo 3h, 3h30. Às 4h, já estou na estrada. No período da manhã, eu pedalo ou corro. Retorno para casa, banho, café, arrumo outra mochila, vou para o trabalho, chego lá às 8h. Quando dá meio-dia, faço uma sessão de fisioterapia ou academia. Saio 17h30, 18h e vou para a natação. São três dias nadando na semana, então intervalo com outro tipo de atividade ou procuro dormir um pouco mais cedo”.
E essa loucura é constante. “A gente nunca para, porque o corpo sente muito. E aí, para voltar, é complicado”.
Ano que vem, o baiano terá mais um IronMan pela frente. Com um detalhe especial: está pré-convidado para disputar a prova no Havaí. “É onde a competição foi criada e participar lá é o que todos os atletas almejam. Então vai ser um ano de muita preparação, de muita expectativa, de coisa boa”.
IronMan
O IronMan é o maior circuito de triatlo do mundo. No Brasil, é disputado anualmente em Florianópolis, no mês de maio. Cinco cidades do país também sediam a versão 70.3 da modalidade, conhecida como meio IronMan, cujas distâncias são metade da tradicional. Além de Floripa, acontece em Fortaleza, Maceió, Rio de Janeiro e São Paulo.