De repente, me encontro ainda tupinambá. Estou sempre naquele pequeno vilarejo, na enseada baleeira de Itapuã. Mesmo longe, desejo uma lagoa escura, a Abaeté, cheia de mistérios e arrodeada de areia branca. Ela se dá prá mim, com encanto de areia branca e lua cheia. Me esperará sempre, mesmo se eu não mais existir. Me desejará mesmo sem eu nunca chegar. Meus voos traduzidos reconhecem a natureza da mulher e de ami osorongá. Sinto sonhos dos terreiros em festa, sem precisar dormir. Sei por que eles oferecem comida aos orixás e alimentam de energia a natureza.
Sim, ali posso ser algo para o universo, ou quase alguma coisa. Assim como o carcará cuja vida é voar alto, se eu não voar no pensamento, morro de tristeza e chão. Nunca me imaginei nada aqui, porque sou algo desconhecido do que sou eu mesmo. Sou diferente da juventude que leva o meu mesmo sangue, sem saber sua verdadeira e remota origem, que pode ser tupinambá, moura, violante da avó e judeu do avô.
Fico do outro lado da cerca, onde ficam as almas e o pecado que minha idade não considera mais. Ando de mãos dadas com o mal, todos os demônios imaginados, e com o bem do Deus que me libertou dele mesmo, para minha convicção e coragem. Nenhuma religião nem livro sagrado me respondem o que pergunto sem medo, porque a resposta não se acha exposta e fácil. Sem os búzios revelarem sorte, ela, osorongá, vira o pano da costa pelo avesso, e tudo dá certo.
É quando a Abaeté se faz lagoa e chega, nua, aparece cigana e ganhadeira. Se vira de costas, e eu vejo aquele rosto que não existe sem meu olhar. O seu lado que gosta, ninguém vê, só eu; quando não existo, vejo. O nada aparece, e ela sabe, sente, e então se veste. Se mostra vazia de tudo, cheia do insuportável. Gosto de, nos meus voos, em sonho, tocar a alma dos que sentem. É o meu grande prazer. E então, escrevo o que sai normalmente dos exus anônimos que desconheço. Eles me ditam secretamente no ouvido, e não me dizem seu nome. Mas guardo um segredo criado, como guardam segredo, as folhas.
Uma grande profecia será revelada. Meu axé é criador, mesmo quando morre. Desconheço o fácil, sou forte no olhar. Quando não mato, é verde. Quando crio, é azul do mar. Quando desejo, é agua doce. Se não me mato, me bebo a mim mesmo, e durmo. Sou todo água, água de Abaeté.
Por José Emmanoel